Terminou, no dia 25 de abril, o período de consulta pública à Estratégia Água que Une, que contou com mais de uma centena de participações, incluindo a ZERO. Os documentos submetidos a consulta não são mais que sínteses (resumo executivo e slides de apresentação) que não justificam a extensa lista de opções orçamentadas e calendarizadas, impedindo qualquer escrutínio com significado ao processo. As medidas elencadas nos documentos claramente beneficiam desmesuradamente uma pequena seção de agentes económicos ligados ao regadio em detrimento de um desenvolvimento equilibrado dos territórios, desconsiderando impactes sociais e ambientais e desconsiderando a própria orientação de prioridades definida1. A “estratégia” está definida sem ponderação de alternativas, mas pretende servir de base a planos e programas que irão ter impactes significativos em vários territórios.
Um processo de elaboração desadequado e enviesado à partida
Do grupo de trabalho, constituído para elaborar a “estratégia”, não constam instituições com competências nas dimensões sociais e laborais, nem da conservação da natureza – áreas inequivocamente impactadas pela gestão da água – o que denota uma visão redutora e enviesada desde o início do processo.
O processo de elaboração da “estratégia” desconsiderou mecanismos legais e institucionais de consulta e participação. É de lamentar que não tenham sido convocadas reuniões do Conselho Nacional da Água nem dos Conselhos de Bacia Hidrográfica, órgãos consultivos competentes e mandatados para debater e coordenar a política da água. Recorreram-se a sessões regionais de auscultação e esparsas reuniões, pouco consequentes para garantir uma participação pública efetiva. A ausência de um debate público genuíno e informado sobre as opções e os seus potenciais impactos mina a legitimidade e a aceitabilidade da “estratégia” a longo prazo e é particularmente grave, tendo em conta os impactos de longo prazo previstos.
Favorecimento evidente de um modelo de intensificação agrícola com impactes negativos severos
A “estratégia” assenta de forma desproporcionada no investimento em grandes infraestruturas hidráulicas – incluindo 14 novas barragens, alteamento de barragens existentes, novas interligações entre bacias e sistemas de dessalinização – que absorvem a maior parte dos 5 mil milhões de euros previstos até 2030. Esta orientação para “soluções fim-de-linha” compromete o equilíbrio ecológico dos rios e dos estuários, agrava a artificialização dos ecossistemas hídricos e promove um modelo de uso da água intensivo e extrativista, focado na expansão agroindustrial, em detrimento da agroecologia e da preservação das estruturas ecológicas e serviços de ecossistema que protegem o recurso água e agrava o défice de sedimentos na costa portuguesa, aumentando a vulnerabilidade da linha de costa à erosão. É também um favorecimento de agentes económicos já privilegiados no setor agrícola face à pequena e média agricultura, sendo um entrave significativo à transição agroecológica justa do sistema agroalimentar.
Grande parte das medidas propostas colidem frontalmente com os objetivos da Diretiva Quadro da Água1, que preconiza a melhoria do estado ecológico das massas de água, e com a Lei do Restauro da Natureza2 que visa a recuperação dos ecossistemas e da biodiversidade. Também as interligações (transvases) de bacias hidrográficas, nomeadamente entre o Tejo-Guadiana e entre o Guadiana, Sado, Mira e Ribeiras do Algarve, representa uma ameaça à integridade ecológica dos sistemas fluviais e favorece um modelo extrativista da água, alheado da sua capacidade de renovação natural e dos serviços ecológicos não remunerados pelos mercados.
Em contraste, a “estratégia” apresenta uma notável ausência de medidas de política orientadas para a gestão da procura, para a conservação dos ecossistemas e para a promoção de um ordenamento do território equilibrado3 e das melhores práticas agrícolas.
“Água que Une” desalinhada com os seus próprios pressupostos
A Estratégia Água que Une pretende, alegadamente, ser um documento orientador de planos e programas a elaborar / rever no domínio da água, para que haja uma visão integrada. Para esse fim seria indispensável recorrer um procedimento de Avaliação Ambiental Estratégica (AAE)4, para que fossem claramente definidos e justificados os fatores críticos de decisão, bem como feita uma análise e ponderação adequada de alternativas. Sem uma AAE, a “estratégia” é um mero exercício sugestivo de alguns elementos da administração pública, sem sustentação técnica nem legitimidade política. Os planos e programas (Plano Nacional da Água, Programa Nacional de Regadios) – que supostamente seriam orientados pela “Água que Une” – terão de passar, por requisito legal, por AAE independentes, impedindo o exercício de criação de uma visão integradora que se pretendia.
Apresenta também uma grave incoerência entre as orientações de prioridades definidas no Despacho que cria o grupo de trabalho responsável pela elaboração da Estratégia Água que Une (Despacho n.º 7821/2024, dos Gabinetes da Ministra do Ambiente e Energia e do Ministro da Agricultura e Pescas) e a alocação de fundos públicos e calendarização das medidas. Se o aumento da eficiência hídrica e o uso racional da água são apresentados como prioritários no Despacho, são as medidas de reforço da oferta de água e subsidiação do regadio industrial são efetivamente priorizadas nos documentos apresentados em consulta pública. Objetivos e princípios são assumidos sem qualquer justificação e depois utilizados para “justificar” as medidas, mas sem que seja apresentado qualquer racional.
Longe da ambição integradora, rigorosa e participativa, a “estratégia” parece ser, na prática, um exercício de lobby político para influenciar os procedimentos de revisão de planos e programas vinculativos, o que não deve ser aceitável.
Fonte: ZERO