Tal como antevíamos nas Notas da semana passada, ninguém ficou indiferente ao relatório entregue à Presidente Von der Leyen sobre o Diálogo Estratégico para o Futuro da Agricultura da União Europeia, a perspetiva comum para a agricultura e a alimentação. De facto, foram muitas as reações de diversas organizações – CAP, CONFAGRI, e, em Bruxelas, do COPA/COGECA, da FEFAC, ELO ou da FoodDrinkEurope, entre outras. De um modo geral, um relatório bem acolhido, com a esperança (pelo menos da nossa parte) de apresentar uma estratégia de correção dos erros, evitando a polarização do discurso e propondo uma política mais equilibrada entre a produção de alimentos e a proteção ambiental ou o (fundamental) combate às alterações climáticas. Sejamos honestos, tais orientações implicam deste logo uma revisão da Estratégia “Do Prado ao Prato”, pelo menos na sua velocidade de implementação. E convém não esquecer as razões das manifestações dos agricultores, as expectativas da indústria agroalimentar e de outros agentes do território e do mundo rural.
Uma vez que o documento é público, sem querer incomodar os leitores e em jeito de conclusão, os principais temas incluem autonomia estratégica, redução do impacto ambiental e promoção da circularidade nos sistemas de alimentação, biomassa e pecuária. Já é sabido que os resultados do Diálogo serão integrados na nova visão anunciada para o futuro da agricultura da UE, no contexto da revisão da Política Agrícola Comum (PAC) e de outras políticas conexas, estando previsto um novo fórum consultivo das partes interessadas da UE (EBAF) para acompanhar a implementação dos principais pontos de ação e recomendações destacados no novo relatório. De resto, como não podia deixar de ser, a futura PAC é amplamente destacada, com o foco em três objetivos essenciais: (1) fornecer apoio socioeconómico direcionado aos agricultores vulneráveis, (2) promover resultados ambientais, sociais e de bem-estar animal, e (3) promover o desenvolvimento rural.
Reconhecendo-se que a economia circular e a utilização de coprodutos são fundamentais, não deixamos de nos preocupar com algumas recomendações como a diminuição do consumo de carne, ligada quer às dietas, quer à redução das emissões, devendo-se alertar para os potenciais danos para o setor pecuário e os setores de que dele dependem, para além da saúde dos próprios consumidores. Vamos necessitar de um diálogo contínuo e de uma maior clareza sobre a coerência das políticas, também no que diz respeito aos objetivos comerciais e ambientais. Não nos podemos alhear deste Fórum Consultivo, nem permitir que outros construam ou definam a nossa narrativa.
E quando todos digeríamos o Futuro da Agricultura (e da Alimentação) na União Europeia, quiçá orientadora da política do próximo Comissário Agrícola, cuja pasta poderá ser entregue à Áustria ou à Irlanda (o Luxemburgo parece cada vez mais distante…), eis que somos brindados com mais um relatório, agora sobre o futuro da competitividade europeia elaborado por Mario Draghi, igualmente entregue à Presidente da Comissão. Esta missão tinha sido anunciada por Úrsula von der Leyen no seu discurso sobre o estado da União de 2023. Nessa sua intervenção, centrou-se no futuro da competitividade europeia como uma prioridade e empenhou-se na redução dos encargos administrativos e no reforço do mercado interno. Recordam-se da prometida “better regulation” do então Presidente Durão Barroso?
Com mais de 400 páginas, o documento é de enorme qualidade em termos de informação, dados qualitativos e quantitativos, aponta caminhos, estratégias, algumas também repetidas, indica erros a evitar, e ambiciona, tal como todos nós, uma Europa comum e coesa. Draghi refere, e bem, que é urgente fechar o ‘gap’ de inovação face aos EUA e à China, coordenar esforços e políticas entre os 27 e apostar na segurança e defesa, sem esquecer a política comercial. Muito centrado na indústria em geral, no investimento, na descarbonização, na digitalização, energia, inteligência artificial, e na necessidade de financiamento, praticamente não fala de agricultura, ignora (aparentemente, não quero ser injusto) o agroalimentar e a referência ao setor surge na página 60, quando se dá conta do peso da PAC (30,9%) ou das políticas de coesão (30,5%) no orçamento da União Europeia. Acabamos por não perceber (pelo menos eu) se Draghi considera que é exagerado este apoio, se propõe um reforço, ou ainda se defende que o setor deve ser financiado ou apoiado por outros fundos, para além da PAC, na desejável transição energética, rejuvenescimento geracional e procura de uma maior competitividade e sustentabilidade.
De facto, reconhece que o apoio da UE ao investimento público e privado é limitado pela dimensão do Orçamento, pela sua falta de orientação e por uma atitude demasiado conservadora em relação ao risco. É indiscutível que o orçamento anual da UE é pequeno, representando, de acordo com o estudo, pouco mais de 1% do PIB comunitário.
Mas, perguntamos nós: onde estão os recursos próprios da União Europeia? Até onde os Estados-membros estarão dispostos a ir? A ideia de uma Europa federalista parece, de facto, cada vez mais uma utopia…cada um a olhar “para o seu umbigo”.
No essencial, o relatório Draghi aborda a necessidade de uma autonomia estratégica da Europa, mas muito ligada a matérias-primas críticas (infelizmente, não agrícolas, embora importantes), e todos sabemos que os aditivos, vitaminas, a proteína, os fitofármacos… não o são menos. Nesta perspetiva, receamos que a Autonomia Estratégica Aberta (Open Strategy Autonomy), de que já aqui falámos por diversas vezes, tenha sido esquecida…
Temos de ter esperança e acreditar que a visão (demasiado financeira?) e a dimensão de Mário Draghi, a quem tanto devemos, tem em conta, nas suas reflexões, a importância da produção de alimentos como decisiva na política de defesa e de coesão da União Europeia, o simbolismo da PAC como a grande política da Europa. Porque a Alimentação também é soberania e não a podemos dar como adquirida.
E, recordando a expressão “aos costumes disse nada”, utilizada nas atas dos tribunais quando se presta juramento, talvez faça sentido referir que o relatório Draghi “à Agricultura disse nada”. Porque já tudo tinha sido dito no Diálogo Estratégico? Ou porque continua a ignorar-se o valor essencial do Setor agrícola e agroalimentar?
Entretanto, e isso já não é novidade, a Presidente da Comissão continua a ignorar os impactos do dossier da desflorestação (EUDR) e a eventual disrupção nas cadeias de abastecimento. Porém, atendendo a que esta semana tivemos uma estimativa concreta do impacto nos setores dos alimentos para animais e da fileira pecuária da União Europeia – 2,25 mil milhões de Euros – este não é um tema que se possa ignorar.
Mas, parece que pouco importa para a atual Comissão Europeia… enquanto nos entretêm com estes relatórios. Importantes, sem dúvida, para o futuro. E no imediato?
Aos costumes, disse nada!
Jaime Piçarra
Secretário-Geral da IACA
Fonte: IACA