Quando o meu pai tinha a idade do Luís, já a nossa família se dedicava em exclusivo à agricultura, produzindo e vendendo algum leite. Antes disso o meu bisavô fora carpinteiro-naval em Vila do Conde e cultivava alguns terrenos. Depois o meu avô foi agricultor a tempo inteiro praticando a policultura normal da região: milho, batata, vinho, feijão, linho (para fazer roupa ou velas para os barcos), alguma vitela que se vendia e algum leite. O Ti António Serôdio, empregado da casa que também andava com os miúdos ao colo, ordenhava de madrugada e levava o leite ao “Trama”, o comboio da linha da Póvoa que passava às 4 da manhã levando leite para a cidade do Porto. O meu pai era o mais velho de 5 irmãos e ficou órfão de pai aos 12 anos. Então, algum tempo depois ele e o meu Tio António alternavam o dia em que tinham de se levantar para fazer a ordenha, mas quando era a vez do irmão também ouvia a minha avó Esperança chamar várias vezes “António, António, ó valha-me Deus!” e acordava na mesma :). E quando levavam 15 litros na cântara até ao “Trama” já era uma festa! Beber leite em casa só ao domingo, quando não havia comboio. Todos os agricultores mais velhos recordam o Trama, mas curiosamente não aparecem referências no google, exceto uns versos de memórias num jornal local, cuja imagem coloco abaixo. Provavelmente o nome terá vindo de “Tram” ou “tramway”, relativos a veículos sobre carris.
A família tinha então 2 ou 3 vacas que levava ao campo a pastar e guardava na “corte”, à noite. Ainda antes de casar, o meu pai construiu a primeira vacaria, para 12 vacas. Algum tempo depois veio a máquina de ordenha, com baldes de inox que se levavam para ordenhar as vacas no estábulo. Foi a segunda cá na aldeia. A primeira fora comprada algum tempo antes pelo Sr. Zeferino Castro, avô do Jorge Oliveira, atual presidente da APROLEP. Terá sido há 52 anos. Nessa altura o destino do leite já era o Posto de recolha do leite da Agros, aqui no lugar do Souto, gerido pelo Sr Marcelino Gomes (Neves) na “Casa Formiga” que começou a receber leite em 12 de Dezembro de 1953 (obrigado ao Sr. Semião e à D. Cremilde pelo apontamento da data). Na década de 70, pouco antes de eu nascer, o meu pai comprou o primeiro tanque de refrigeração do leite, que instalou ao pé da “porta da Carreira”, a 60 metros da vacaria e lembro-me com 3 ou 4 anos não queria ficar no quarto com a avó apesar das bolachas e andava atrás da minha mãe e das viagens com as bilhas do leite.
A falta de Espaço para aumentar o estábulo levou o meu pai a mudar-se e construir em 1980 a primeira vacaria, para 28 vacas, no local onde agora nos encontramos (ainda me lembro de tocar a forja para dobrar os ferros usados na construção). Na altura as vacas estavam presas, com tapetes de borracha e sistema de colar suíço (ainda há algumas por aí e muitas no mundo) e ao longo da vacaria circulava o “lactoduto” com tubo de vácuo para a pulsação e tubo de vidro para recolha do leite. Em 1987, com ajuda do “programa 797” fizemos a primeira sala de ordenha, para ordenhar 7 animais de cada vez. Para distribuição a ração a cada vaca puxava-se a corda de um doseador. Havia umas vacas espertas que aprendiam a puxar a corda, de modo que a gente ia tapando o fio e elas iam descobrindo novos truques…
Em 1996, deixámos o velho estábulo para a recria, construímos ao lado o atual em sistema semi-livre, passámos a sala de ordenha para 2×7/7 e instalámos as “boxes” para fornecimento automático da ração às vacas. Em 2006 comprámos uma ordenha usada 2×6/12, mas já com identificação eletrónica, retiradores automáticos e medição eletrónica. Finalmente, em 2012 remodelámos o estábulo para permitir as atuais 60 vacas ordenhadas pelo robô instalado a 20 de fevereiro de 2013.
A área cultivada para alimentar os animais também aumentou. Ao longo de décadas, a alguns terrenos herdados juntaram-se outros comprados, desmatados e, mais recentemente, alugados a outras famílias que deixaram a agricultura. Hoje é normal cada um de nós, produtor de leite no “ativo”, cultivar os terrenos de várias “casas de lavoura” de há 30 anos atrás.
A produção de leite tem 10.000 anos de história no mundo e tem dezenas ou centenas de anos de história nas nossas famílias, cooperativas e empresas de lactícínios. A minha história não é importante por ser extraordinária, é importante por fazer parte de mim. É semelhante à de alguns colegas e diferente de outras. Estas histórias dizem-nos que a produção de leite não nasceu ontem e não vai acabar amanhã. Tem lastro, raízes e tradição, por isso merece respeito e confiança.
#carlosnevesagricultor
(versos do “jornal vilacondense” e “tabela de preços” do jornal “A Ordem”)

