
Não cultivámos a distância, não nos mantivemos à margem, não evitámos emoções. E talvez por isso, por isso de certeza, e pela dureza das experiências que eles contaram e a superação sobre-humana que revelaram, de tempos a tempos lembramo-nos deles, as vítimas do 15 de Outubro.
Da Patrícia e do André.
Ela quase o perdeu, o amor de sempre, para o incêndio de Midões. Ele perdeu o pai João e saiu da luta contra as chamas com um corpo que não conhecia, queimado em 75%. Ficou a vida e um esforço diário para se agarrar ao fio que restou. O fio depressa virou novelo, bola gigante, planeta. Como estará a horta da casa nova em Andorinha, onde André estava apostado em renascer numa nova pele? Será que a pequena Alice o ajuda a apanhar as couves ou já consegue sozinho dar uso às mãos que as chamas atrofiaram?
Foi Patrícia quem ontem, véspera da tragédia, deu as boas novas. No último ano a família cresceu. Há quase três meses nasceu Vicente, o segundo filho do casal. Na horta já há mais do que couves, há todo um olival. André só não consegues trocar fraldas (e não tem muita pena) – de resto é autónomo. O quintal é o seu reino. E também o asfalto. Voltou a andar de mota, um objetivo de longo prazo que se fez curto. Dois anos depois, o 15 de outubro apanha-o internado para mais uma cirurgia plástica ao braço mais afetado, a segunda este ano e que espera derradeira. Ainda há (literalmente) feridas abertas daquele dia. Para André, é só o que falta fechar.
Da Odete.
A doce Odete. Um corpo de luto a que só o cabelo completamente branco corta o negro que veste fora e vive dentro, em Gramundes, Oliveira do Hospital. Como se perdem os dois filhos, com um ano de intervalo, e se mantém a verticalidade? Mulher forte não verga e a rotina dos dias torna-lhe útil a existência. Do seu “rico filho”, de 45 anos, ficou-lhe a nora por companhia, o radio mudo e os gatos. Continua a alimentar todos menos a música que ainda não voltou a ouvir. Dois anos passados permanece mudo. Ou quase. Liga-se para o relato dos jogos do Benfica e da Seleção Nacional, que o filho seguia com devoção, e a cada golo grita-se e corre-se a beijar o retrato do Pedro Luís. Mais a nora que ela.
Vivem na mesma casa, em pisos diferentes. Ouve-a muitas vezes a falar com o marido, a contar-lhe o dia, como se o mundo ainda estivesse em 14 de outubro de 1917. Odete faz o mesmo. Os rituais são importantes. Continua a ir diariamente ao cemitério, pela tardinha, e no último ano ganhou mais um local de peregrinação. Ousou voltar à sua estrada da morte, a poucos quilómetros de casa onde o filho “se ficou”. Plantou lá flores e mandou fazer uma cruz de granito com a data da morte. “É tão sagrado como o cemitério. Foi ali que o vi a última vez”.
Do José.
Há um ano, o bombeiro estava apostado em terminar as obras da casa idealizadas pela mulher Amélia, em Freixedas, na Guarda. Ela partiu, ele continuou-lhe os sonhos, como se lhe prolongasse a existência. Será que já terminaram? Já acabaram garante José Ramalho, mas nem assim passa lá mais tempo. Dois anos depois continua a ser difícil. A filha ainda está a estudar em Coimbra, licencia-se este ano. E a solidão mata-se porta fora. Esta semana anda a ajudar os amigos nas vindimas, trabalho duro, de dias. Calha mesmo bem. Não há data que mais queira esquecer.
Da Marianna e do Hélder
Na imensa quinta em Avô, Oliveira do Hospital, morreu mais do que um escritor inglês, votado ao isolamento e aos seus gatos egípcios. Ardeu o trabalho de todos os dias de um casal luso-holandês, todos os cinco hectares de hortas e agricultura biológica, 113 árvores de fruto, 33 castanheiros, 260 oliveiras e o lagar, a vinha e a adega, e os animais. E ardeu a casa. “A casa”. Conhecemo-los já as obras decorriam, mas sem qualquer esperança de que no mesmo sitio com as mesmas pedras voltasse a erguer-se o lar, com música que lá guardavam, as recordações de viagens, as madeiras já vividas. Mudaram-se no natal. O gás e a água quente, porém, só chegaram esta semana, dois anos depois do incêndio, explica Hélder. E confirma: “é uma casa, não é a casa”.
Apostam agora tudo em ter de novo “a quinta”, que já foi até cenário de filmes. As oliveiras voltaram quase todas a rebentar, duzentas e tal a arrancar a produção. Este ano vão retomar a apanha da azeitona, uns três ou quatro quilos de onde já saíram três mil. A horta também já vai viçosa, próxima do que era. Marianne, uma força da natureza em galochas, não permitiria que fosse de outra maneira.
Quando passara um ano do 15 de outubro de 2017, escrevemos que há entre os sobreviventes daquele dia, de temperaturas tórridas e vento demoníaco soprado pelo furacão Ophelia, uma resiliência que parece soltar-se dos genes, que lhes levanta a cabeça e o corpo, que lhes põe as mãos ao trabalho, que pinta de rosa o que o fogo fez negro. É gente forte, a quem só as emoções de uma perda devastadora travam a total recuperação.
Um outro ano em cima, dois da tragédia, mantém-se cada frase, palavra, letra. O fogo não os ganhou.