Foi publicado o relatório “Situação populacional do lobo em Portugal/ resultados do Censo Nacional 2019 – 2021“.
A ligação acima é para um resumo de resultados, mas no fim da página está a ligação para a totalidade do relatório.
Há já uns tempos escrevi, longamente, sobre o cuidado na análise deste tipo de relatórios, neste caso, sobre o livro vermelho dos mamíferos, que é citado no relatório recente e que me serviu também de exemplo no que escrevi.
Conheço muito bem as duas coordenadoras do relatório, são minhas colegas do ICNF, trabalhei directamente e muitas vezes com as duas e gosto pessoalmente e profissionalmente das duas, o que não me impede de ter divergências profundas, e zero conflitos, sobre a abordagem de conservação do lobo (e, genericamente, dos valores naturais), sem que isso afecte as nossas relações pessoais (tanto mais que, uma delas, mais tarde, passou a cunhada de uma das minhas filhas).
Dou um exemplo para explicar: “De acordo com estudos que têm sido realizados nos últimos anos, a zona do Planalto Mirandês apresenta disponibilidade de habitat adequado para o lobo e para as suas presas selvagens, nomeadamente ao longo da margem esquerda do rio Sabor, entre Vimioso/Miranda do Douro até Torre de Moncorvo, tendo inclusive esta zona sido identificada como um dos potenciais corredores de ligação com a subpopulação que ocorre a sul do rio Douro (Procels 2011, Grilo et al. 2018, Nakamura et al. 2023). Assim, embora a expansão ou intensificação de áreas agrícolas, nomeadamente de culturas permanentes que se verificou na região de Trás-os-Montes na última década (INE 2021), possa ter diminuído a área de matos e/ou florestas nesta zona, esta não deverá ser a principal causa do aparente desaparecimento de várias das alcateias detetadas nesta área no censo anterior. No âmbito do Sistema de Monitorização de Lobos Mortos têm sido registados, ao longo dos anos, vários casos de mortalidade ilegal nesta área, nomeadamente por tiro (Barroso et al. 2016, Pimenta et al. 2020), o que poderá constituir uma das principais condicionantes à presença do lobo na mesma”.
Este parágrafo que cito directamente do relatório não faz qualquer sentido para mim, porque interpreto os factos descritos exactamente ao contrário: o registo de lobos mortos, ainda por cima maioritariamente por atropelamento (isto não está no parágrafo é uma inferência que faço de outro dado do relatório) é um fortíssimo indício de expansão e crescimento populacional do lobo, e não me parece um factor relevante de contenção da sua expansão.
As razões para esta diferença de pontos de vista são muito profundas, mas radicam, tanto quanto consigo entender, numa visão limitada à bolha social em que se discute o problema, que caracteriza a investigação científica na biologia da conservação, aspecto transversal ao feudo da biologia de conservação, mas especialmente marcado na faculdade de ciências de Lisboa.
Por mera coincidência, hoje de manhã fizeram-me chegar uma tese de mestrado, que me parece bem interessante “Nature might need some nurture: slow passive vegetation recovery in Mediterranean abandoned farmland/ The Baixo Sabor case study” que é sobre restauro passivo de ecossistemas por abandono rural, e nem as referências de evolução da paisagem usadas são de fora da bolha social dos investigadores (por exemplo, a única tese que conheço sobre a evolução da paisagem em Portugal durante todo o século XX, que é a minha, é ignorada, como a generalidade da investigação sobre o assunto que não seja estritamente proveniente dos meios da biologia da conservação) nem, o que é mais grave, sendo o fogo uma questão central na discussão do assunto, Paulo Fernandes ou José Miguel Cardoso Pereira são considerados, ao mesmo tempo que se citam, abundantemente, autores da área da biologia da conservação que palpitam sobre essas áreas que não investigam.
Sem supresa, o mesmo se passa no relatório que cito, em que todas (ou a generalidade, posso estar a ser injusto, por falta de leitura mais cuidadosa do relatório) as referências relacionadas com evolução de habitat são de artigos de investigadores relacionados com a biologia da conservação, ignorando-se a investigação sobre evolução da paisagem que poderia dar rigor ao relatório (e isto é independente do facto das próprias citações nem sempre confirmarem o que é dito no relatório, por exemplo, no que diz respeito à relação entre a conservação do lobo e os incêndios).
“outras causas estarão a condicionar a recuperação da subpopulação de lobos que ocorre a sul do rio Douro. Entre estas deverão estar as alterações do habitat decorrentes da ocorrência de grandes incêndios florestais, de cortes rasos de vegetação e da instalação de vários empreendimentos eólicos, que se têm verificado na área de distribuição do lobo a sul do rio Douro, nas últimas duas décadas”, por exemplo, é uma afirmação que, no mínimo, é discutível (as referências bibliográficas que a suportam, mais uma vez, são de investigadores que investigam o lobo e depois levantam hipótese não fundamentadas sobre a evolução do habitat para explicar os resultados a que chegam) já que a tendência global é a recuperação dos ecossistemas em consequência do abandono rural, e os grandes incêndios florestais são uma consequência dessa recuperação, para além dos cortes rasos terem uma expressão marginal na evolução do coberto vegetal que, na melhor das hipóteses, provocam deslocações pontuais de alcateias, mas não afectam disponibilidades de habitats ou presas.
De resto, a disponibilidade de habitat para o lobo, em meados do século XX, numa altura em que a poulação de lobo se considera em estado mais favorável de conservação, com uma distribuição muito mais extensa e um número de alcateias muito maior, era incomparavelmente menor, o que torna as explicações de alteração de habitat para eventuais limitações na expansão do lobo pouco credíveis.
Do mesmo modo, é estranhíssimo que haja aumentos de 50% das alcateias numas zonas do país e, na zona adjacente, haja diminuições de 50%, pelo que o investimento em explicações sólidas para estes resultados deveria ser proporcional à estranheza da situação, não podendo ser factores que o próprio relatório considera transversais (embora admita que possa haver diferenças de escala no peso desses factores em cada localização) a explicar estas circunstâncias.
O relatório oferece boas pistas para explicações alternativas, ao explicitamente referir que o número de alcateias confirmadas aumentou, o que diminuiu foi o número de alcateias prováveis, isto é, há uma zona cinzenta da produção de informação, relacionada com o esforço de amostragem e com a interpretação dos indícios, que pode explicar os resultados, que o relatório não discute.
Esta opção é tanto mais incompreensível quanto é evidente que é nas zonas de maior esforço de investigação que há maiores aumentos (no lote chamado Peneda-Gerês, mas também, dentro do lote do Nordeste, a diferença entre o que se passa no Parque Natural de Montezinho e no resto da área do mesmo lote).
Quando se olha para o boneco em que se mostram as áreas de aumento e diminuição em relação ao censo anterior, não existe qualquer lógica geográfica que possa explicar esta dinâmica populacional do lobo (há explicações com base em factores que não são específicos de nenhuma das áreas, são transversais).
Fora da substância, o relatório apresenta informação que permite admitir outra explicação para as diferenças: a informação é produzida por diferentes equipas de investigação a quem são atribuídas áreas geográficas de avaliação da situação do lobo.
Tudo isto permite uma discussão substancial e rica da situação do lobo em Portugal, da evolução da paisagem e, consequentemente, dos habitats e da disponibilidade de presas, das políticas de conservação, etc..
O que faz a imprensa mais especializada e atenta às questões de conservação?
Limita-se a empolar conclusões gerais discutíveis, como a diminuição do número de alcateias e da área de distribuição (contra toda a evidência da produção de informação cinzenta, quer de avistamentos, quer de prejuízos, quer de mortes acidentais ou por abate ilegal), num contexto em que a espécie está em franca expansão em toda a Europa.
Mesmo em Espanha, que o relatório discute brevemente, o recentíssimo, com dias, relatório do censo de Castilha/ Léon identifica um aumento populacional a Sul do Douro de 30%, dado que evidentemente não pode estar no relatório que lhe é anterior, mas poderia estar na imprensa, se os senhores jornalistas se dedicassem a ir à procura de informação primária, como eu fiz, em vez de repetirem as enésimas declarações de dirigentes de organizações de conservação, sempre iguais, e sempre dramáticas.
Aceitar passivamente a tese do oásis português na dinâmica da população de Lobo (o relatório diz que o oásis é ibérico, sempre é melhor, embora igualmente discutível) sem questionar e avaliar a informação disponível, é um bom retrato da imprensa ambiental, sempre, sempre mais interessada no milenarismo que na discussão cartesiana de assuntos complexos.
O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.