As últimas semanas foram marcadas pela instabilidade, volatilidade e imprevisibilidade em diferentes cenários, desde a queda do Governo, às negociações para um cessar-fogo na guerra da Ucrânia, passando pelo anunciado Plano ReArm Europe e pela imposição de tarifas pela Administração Trump, anunciadas para 2 de abril, de 25% sobre a importação de automóveis e para outros setores, no quadro das tarifas recíprocas. Ainda não é claro se essas tarifas irão ser aplicadas individualmente aos Estados-membros ou à União como um todo – criando mais um foco de tensão e de divisão da Europa – numa altura em que aço e alumínio se encontram já tarifados. Certo é que a Presidente Von der Leyen prometeu reagir em conformidade, pese embora não deseje a retaliação, estando a ser discutida uma lista de produtos que tem um impacto significativo na alimentação, desde logo na alimentação animal e, obviamente, na produção pecuária.
Este sentimento de insegurança e preocupação, que não podemos desligar da postura (desconcertante?) dos Estados Unidos da América (EUA) para com os seus tradicionais aliados ou o posicionamento estratégico norte-americano nos conflitos entre a Rússia e a Ucrânia ou no Médio Oriente, parece ter retirado do radar alguns factos positivos que importa valorizar.
No plano interno, a destacar como positivo, para além do desempenho das contas públicas e do excedente de 0,7% do PIB, o regresso dos animais de companhia, da aquacultura e das florestas à tutela do Ministério da Agricultura e Pescas. Também positiva é a Estratégia “Água que Une” (veremos depois a sua operacionalização) em consulta pública até ao próximo dia 25 de abril. Igualmente importante, o lançamento, no próximo dia 9 de abril, da Estratégia “+Cereais”, que retoma a Estratégia Nacional para a Promoção da Produção de Cereais, de 2018, numa sessão em que a IACA irá assinar um Memorando de Entendimento para a criação de uma organização Interprofissional para o setor. Não são aceitáveis estes níveis de autoaprovisionamento e dependência nos cereais, sobretudo na atual geopolítica mundial, mas também é urgente o aumento da capacidade de armazenagem e a necessidade de dispormos de stocks estratégicos de segurança, à semelhança do que existe noutros setores sensíveis como o petróleo, por exemplo. Não menos relevante, as exportações da indústria alimentar e das bebidas, que registaram em 2024 um recorde de 8.190 milhões de euros, mais 8,7% face a 2023, apesar da desaceleração económica mundial. A indústria tem sabido adaptar-se, antecipar-se e responder às exigências do consumidor, enquanto se afirma em mercados cada vez mais exigentes e contribui para mudar o perfil da economia portuguesa. De acordo com o Gabinete de Políticas e Planeamento (GPP), o défice da balança comercial do Complexo Agroalimentar passou de 5 485 para 5 052 milhões de euros o que se traduziu num desagravamento de 434 milhões de euros. Urge continuar a valorizar a produção nacional e contribuir para o equilíbrio nas contas do agroalimentar.
No plano externo, o reiterado reconhecimento, no último Conselho Agrícola, da agricultura e alimentação como estratégicos para a União Europeia (UE) e o apoio à Visão sobre o futuro da Agricultura e da Alimentação. De acordo com o Presidente em exercício, o Ministro polaco, Czesław Siekierski, importa transformar agora a Visão numa realidade, necessitando de um orçamento adequado e autónomo para a Política Agrícola Comum. Declarações que importam reter para o debate sobre o Quadro Financeiro Plurianual. Temos ainda a discussão sobre a proposta legislativa das Novas Técnicas Genómicas que, perante o compromisso da Polónia, foi possível desbloquear, e ter alguma esperança de que, aprovada pelo Conselho e seguindo agora para o Trílogo, possa ser mais flexível, com bases científicas, e desprovida de ideologias. Enfim, uma ferramenta para a competitividade e sustentabilidade da agricultura e da indústria, evitando disrupções em mercados tão importantes como o milho ou a soja.
Ainda no plano externo, mas já no campo das inquietações, veremos como vai evoluir um eventual acordo no Mar Negro, o papel da Turquia e da UE no processo, face à posição da Rússia de lhe serem levantadas as atuais sanções. Para já, Bruxelas recusa quaisquer cedências enquanto as tropas russas não forem retiradas da Ucrânia. Deste desfecho também depende um outro dossier relevante para Portugal: o acordo entre a UE e a Ucrânia que termina no próximo mês de junho e que alguns Estados-membros pretendem que regresse a um regime de contingentes pautais.
No entanto, o que verdadeiramente nos inquieta, no muito curto prazo, é a eventual escalada de tarifas nas importações dos EUA para a UE e a abertura de uma guerra (guerrilha) comercial nas relações entre os dois blocos.
Na lista de potenciais retaliações temos produtos tão importantes para a indústria da alimentação animal – com impactos na carne, leite e ovos – como o milho, soja, corn glúten feed, DDGS ou aditivos (oligoelementos, aminoácidos, coccidiostáticos). No caso de alguns coprodutos do milho, como o corn glúten ou os DDGS, os países mais afetados pelas retaliações são Portugal, Espanha e Irlanda, o que não faz qualquer sentido.
De acordo com as nossas simulações, num cenário extremo de tarifas ao milho e soja, os custos para os alimentos compostos para animais poderão situar-se nos 145,8 milhões de euros. Por outro lado, organizações europeias, como a FEFAC, COCERAL e FEDIOL, estimam, apenas para a soja, um montante de 2,25 biliões de euros, comprometendo, desde logo, a implementação da legislação sobre as cadeias livres de desflorestação (EUDR), uma vez que a origem norte-americana poderá deixar de ser viável. Tudo isto a acrescentar aos custos que já decorrem da imposição de direitos antidumping à importação de lisina proveniente da China (na ordem dos 500 milhões de euros). Quem vai pagar a fatura? Inevitavelmente, tenderá a ser repassada ao longo da cadeia de abastecimento alimentar, sendo inegáveis os aumentos de preços no consumidor. Está em causa a competitividade da fileira pecuária em Portugal e na União Europeia.
No dia 7 de abril, os Ministros dos Negócios Estrangeiros decidirão a aplicação das tarifas retaliatórias. Aguardemos pelas decisões, sendo que, na consulta pública que terminou a 26 de março, a posição da IACA (e da FEFAC) para a DG TRADE e autoridades portuguesas foi inequívoca: apelamos ao Governo e autoridades nacionais para continuarem as negociações e evitarem eventuais retaliações, retirando todos estes produtos e matérias-primas essenciais da lista proposta, porque colocamos em risco a segurança das cadeias de abastecimento.
Precisamos de mais comércio e não de menos trocas comerciais, de multilateralismo e não de protecionismo. Necessitamos de aprofundar as relações transatlânticas e não de destruir o que foi feito nas últimas décadas. O melhor exemplo de cooperação foi a experiência de termos participado, nos últimos 4 anos, na Plataforma Colaborativa sobre Agricultura (CPA) criada entre o USDA e a DG AGRI, que funcionou até dezembro de 2024.
O reforço nas relações entre a UE e os EUA é essencial para reduzirmos, por exemplo, a dependência da China em aditivos, vitaminas e aminoácidos e reforçarmos a nossa Autonomia Estratégica.
Se esta simples mensagem não for entendida, numa altura em que a Organização Mundial do Comércio se encontra sem qualquer capacidade de resposta ou de iniciativa, a conclusão é, infelizmente, muito clara: ninguém sai ileso!
Jaime Piçarra
Secretário-Geral da IACA