Nestes tempos conturbados em que vivemos, em que, não raras vezes, as redes sociais são a única fonte noticiosa de referência, é de saudar o notável exercício de cidadania e de responsabilidade cívica demonstrado pela CAP esta semana, ao realizar um Webinar sobre o Impacto do acordo com o Mercosul na agricultura portuguesa.
De facto, começavam a circular nas redes sociais muitas análises e visões catastróficas sobre o acordo, que não correspondiam à realidade. É sabido que vivemos de perceções, são estas que, para o bem e para o mal, vão moldando as políticas públicas, mas é urgente dispormos de dados, fiáveis, sabermos do que estamos a falar, ouvir os especialistas e não “comentadores de bancada”, não ir a reboque de posições que nada têm a ver com os nossos interesses. Os ventos que estavam a soprar, e certamente continuarão, vindos de França ou de Espanha, são claramente contaminados pelo descontentamento relativamente às políticas internas, sobretudo em França, mais do que relativamente aos termos e consequências do acordo. E ainda esta semana ficámos a saber que a Assembleia Nacional francesa aprovou duas resoluções contra o acordo da União Europeia com o Mercosul. Ou seja, o tema vai continuar na agenda politico-mediática e, claro, nas redes sociais.
Quando foi anunciado, tivemos a oportunidade de aqui refletir sobre o mesmo, numas Notas intituladas “Um acordo Inevitável?”.
Na altura considerámos como globalmente positiva esta estratégia, uma aposta no multilateralismo, em mercados com quem temos uma forte relação, ou seja, o reforço da autonomia estratégica. Os produtos europeus, consagrados nas Denominações de Origem ou nas IGP estão efetivamente protegidas, acautelados os produtos sensíveis como os bovinos e aves, os cereais são um “não problema”, como tem sido demonstrado pelas análises, nas importações de milho provenientes do Brasil, quer pela QUALIACA, quer pelos controlos da DGAV ou pelos operadores. Está efetivamente assegurada a proteção da saúde pública. Coisa diferente são as regras de produção na origem e o impacto na competitividade das empresas. Para já, a Comissão Europeia admite um pacote de ajudas aos setores mais afetados. É absolutamente fundamental prosseguir o diálogo e a cooperação estratégica com os países do Mercosul para que seja possível o reconhecimento de regras no quadro da segurança alimentar, ambiente, saúde e bem-estar animal. E é de saudar a resposta do Brasil e da Argentina no que respeita à implementação do EUDR: a favor dos princípios, mas com maior flexibilidade e simplificação.
Durante os dois anos em que se prevê o início da implementação do acordo com o Mercosul (a partir de 2027?), temos de estar vigilantes, trabalhar para um melhor entendimento e conscientes dos desafios e dificuldades, mas também das (excelentes) oportunidades para o agroalimentar. Por isso, convêm não o rejeitarmos à partida para que sejam possíveis as desejadas melhorias e, o mais relevante, ser favorável a Portugal.
Quanto à cooperação estratégica com os países da América do Sul, era importante replicar a metodologia criada nestes quatros anos pela Administração Biden, no que respeita às relações transatlânticas – a implementação de uma Plataforma Colaborativa para a Agricultura (CPA) – que, neste momento, desconhecemos se a atual Administração Trump irá manter. Com mais ou menos ameaças de tarifas – esta semana também tivemos um confronto verbal com o Brasil e uma posição do Presidente Lula da Silva de que irá aplicar medidas de reciprocidade –, é essencial um diálogo permanente e construtivo entre a União Europeia e os EUA.
No entanto, o grande destaque da semana vai para a transformação das linhas gerais do Relatório Draghi num Roteiro ou plano de Ação, com três eixos prioritários: inovação, descarbonização e segurança (alimentar e de defesa).
A Comissão apresentou a Bússola para a Competitividade, a iniciativa mais importante do atual Mandato, que define um quadro estratégico claro para orientar os trabalhos.
É mais do que reconhecido que a União Europeia está a perder terreno para a China e Estados Unidos, na inovação e tecnologias, a competitividade é afetada negativamente pelo peso regulatório e elevados custos de contexto, e é urgente reforçar a sua autonomia estratégica. Deste modo, apresenta-se um novo plano para a prosperidade e a competitividade sustentável da Europa, colocando a investigação e inovação no centro de uma economia que se quer mais circular e resiliente, marcadamente digital, com mais investimento, e colmatando as lacunas em matéria de competências e de mão-de-obra.
O grande objetivo, que saudamos, é o de tornar a atividade empresarial mais fácil, ágil e atrativa.
Entretanto, vão começar as discussões em Bruxelas relativamente à Visão Estratégica sobre a Agricultura e Alimentação, no quadro do EBAF, esperando-se um primeiro documento provavelmente só depois das eleições na Alemanha. Façamos votos para que esta Bússola para a Competitividade possa nortear ou condicionar, de algum modo, a reforma da PAC pós-2027, mais simples e flexível (o que nunca aconteceu nas sucessivas reformas) e que temas como as novas técnicas genómicas e a biotecnologia agrícola possam ser discutidos – com mais realismo e menos populismo e hipocrisia – como ferramentas ativas de competitividade e sustentabilidade.
A Presidente da Comissão referiu, e bem, que a Europa tem o que precisa para ganhar a corrida para o topo. Mas, ao mesmo tempo, devemos dar resposta às insuficiências e ganhar competitividade. Se existe um amplo consenso, exige-se agora mais coesão e ambição da parte dos Estados-membros, menos egoísmo e vulnerabilidade face às ameaças externas e crescente populismo.
Parece que estamos a entrar num novo ciclo: os acordos comerciais, que têm permitido atingir sucessivos superavit no comércio agroalimentar da União Europeia nos últimos anos, e este Roteiro, são parte integrante da Autonomia Estratégica e da afirmação do espaço europeu na geopolítica mundial.
Há uma semana, aqui refletíamos sobre essa Autonomia e a necessidade de encontrar respostas perante os desafios globais. As conclusões do relatório Draghi contêm muitas das respostas e sim, deve ser levado muito a sério.
Estarão os países à altura dessa nova dimensão europeia?
Jaime Piçarra
Secretário-Geral da IACA
Existe Autonomia Estratégica na União Europeia? – Jaime Piçarra – Notas da semana