O mercado voluntário de carbono em Portugal
Pese embora o compromisso de mais de 190 países firmado no Acordo de Paris, em 2015, para uma redução das suas emissões de gases com efeitos de estufa (GEE) com vista a suster o aumento médio global da temperatura bem abaixo dos 2 graus Celsius, verifica-se hoje que o nível de emissões aumentou e que a temperatura média global do planeta superou já os 1,5 graus Celsius. De tal modo que, no seu Relatório sobre as Alterações Climáticas 2022: Mitigação das Alterações Climáticas, o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas das Nações Unidas conclui que, além das medidas já adotadas, também “as remoções de dióxido de carbono são necessárias para alcançar zero emissões líquidas de CO2 e GEE, tanto a nível global como nacional, contrabalançando as emissões residuais que não são possíveis de evitar”.
O Decreto-Lei n.º 4/2024, de 5 de janeiro, institui um mercado voluntário de carbono (MVC) e as regras para o seu funcionamento em Portugal (“Regime do MVC”), com vista a contribuir para o cumprimento dos objetivos e metas climáticas nacionais, em linha com os objetivos da União Europeia e com os compromissos assumidos no plano internacional, como sejam os ODS – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
Para assegurar segurança e confiança aos investidores neste mercado são fixados princípios (em especial, da adicionalidade, da permanência, do acompanhamento e da transparência) e procedimentos (registo em plataforma pública e escrutínio por verificadores independentes) que garantam um contributo demonstrável e efetivo para a neutralidade carbónica, evitando situações de branqueamento ecológico (“greenwashing”). Tal poderá também contribuir para um alinhamento tendencial dos valores de transação de créditos com os praticados nos mercados obrigatórios, como seja o do Comércio de Emissão de Licenças Europeu (CELE).
Os desenvolvimentos esperados
A plena operacionalização do MVC em Portugal depende, porém, dos seguintes instrumentos e medidas ainda por adotar:
- Portarias de regulamentação relativamente à qualificação dos verificadores independentes, à informação a disponibilizar na plataforma pública, às taxas devidas pelo registo de projetos e de créditos na plataforma do MVC e pela aprovação de metodologias propostas por agentes de mercado e, por fim, às condições e capitais mínimos dos seguros para a cobertura de situações de reversão de emissões sequestradas;
- Disponibilização da plataforma pública para registo dos projetos de carbono e dos respetivos créditos disponíveis ou já transacionados;
- Publicitação da designação dos membros da Comissão Técnica do MVC, criada pelo Despacho n.º 3771/2024, de 8 de abril;
- Publicitação das metodologias pela Agência Portuguesa do Ambiente, auscultada a Comissão Técnica do MVC.
Tendo em conta os aspetos objeto de regulamentação, como sejam taxas a cobrar aos agentes de mercado, obrigatoriedade de informações de transações privadas comerciais a disponibilizar publicamente, requisitos para o exercício da atividade profissional de verificador de projetos de carbono ou condições mínimas para a disponibilização e celebração de seguros por privados, será expectável[1] que os projetos de portarias sejam sujeitos a escrutínio público antes da sua publicação, à semelhança, aliás, do que sucedeu com o próprio projeto de Decreto-Lei que institui o Regime do MVC. De registar, a este título, que no texto preambular deste diploma é explicitada a importância do princípio da transparência no funcionamento deste mercado e de “permitir o envolvimento e a participação dos diversos agentes, ao nível individual ou organizacional, público ou privado (…)”.
Num sistema assente neste propósito de transparência, antecipa-se igualmente a divulgação pública dos representantes designados por cada uma das entidades que constituem a Comissão Técnica de Acompanhamento ou, pelo menos, dos dois representantes da academia convidados e que devem ter “reconhecidos conhecimentos em temas relevantes para o desenvolvimento do mercado voluntário de carbono, designadamente em matéria de alterações climáticas e de economia e mercados de carbono”. Isto, tendo presente que competirá a esta Comissão não só o desenvolvimento das metodologias de carbono, como a já anunciada metodologia de sequestro florestal, mas também a validação das metodologias que sejam propostas por outras entidades – a título de exemplo, relativas a atividades agropecuárias ou ao carbono azul.
Por outro lado, com vista a permitir uma plena operacionalização do MVC com a maior brevidade, a entrada em discussão pública das metodologias afigura-se também essencial, pois comportam questões que seguramente terão apports muito relevantes por parte de especialistas e entidades dos setores em causa, com eventuais necessidades de ajuste às propostas iniciais.
De entre essas questões, sobressai a de saber quais os cenários de referência que serão admitidos e quais serão as evidências exigidas para demonstrar a situação original e o posterior desenvolvimento em função das ações tomadas pelo promotor do projeto. Estas opções revelam-se de especial cuidado em projetos de sequestro florestal, tendo em conta, por um lado, que os resultados destes projetos de carbono tendencialmente tardam alguns anos a gerar resultados mais expressivos e, por outro, muitos proprietários florestais já têm vindo a desenvolver atividades devidamente documentadas que são passíveis de se conformar com os princípios exigidos em sede de validação das emissões reduzidas ou sequestradas para geração de créditos de carbono, nomeadamente os princípios da adicionalidade, da permanência e da transparência.
As regras fixadas para um sistema de monitorização, reporte e verificação afiguram-se igualmente de especial atenção, pois não deverão representar, na prática, um encargo incomportável ou dissuasor para os promotores de projetos de carbono e adquirentes dos respetivos créditos. A admissibilidade do recurso a meios tecnológicos de verificação e de uma periodicidade dinâmica e casuística podem ser opções que contribuam para um sistema de verificação fidedigno e menos oneroso para os promotores dos projetos de carbono.
Num mercado que se quer voluntário para a transação de bens ou produtos entre privados, a adesão destes agentes às regras determinadas pelo legislador e detalhadas pelas autoridades públicas é um fator indispensável para o seu sucesso. Só um processo participado assegurará a necessária adequação das opções tomadas para garantir um mercado vivo e dinâmico que permita catalisar investimentos do setor privado, em complemento ao esforço público, na aceleração de ações de mitigação no território nacional.
Artigo em parceria com:
[1] À data da redação do presente artigo não é ainda conhecido calendário relativo à publicação das portarias nem da decisão da sua disponibilização para consulta pública. Apenas tem sido noticiada a intenção da Agência Portuguesa do Ambiente de colocar em consulta pública uma metodologia de carbono (de sequestro florestal) no segundo semestre de 2024 – cuja elaboração e validação dependem, porém, do funcionamento da Comissão Técnica de Acompanhamento, cujos membros estarão ainda por conhecer.
O artigo foi publicado originalmente em Vida Rural.