Olga Cavaleiro
Desconfio que não há casa no Baixo Mondego rural que não tenha um tacho de arroz sempre feito para os que aparecem à última hora para o almoço ou jantar ou para as refeições imprevistas. Para quem é destas terras planas encostadas ao Mondego e se habituou à sua paisagem, o arroz sabe a infância, sabe às viagens de Coimbra que, tal Mondego que se encontra e se descobre no mar, desembocam alegremente na Figueira, sabe ao sol que se acompanha no horizonte e que, ora se reflete na água das marinhas preparadas para a sementeira, ora faz brilhar o amarelo da seara, sabe a cegonhas que, escondidas nas árvores mais altas, raramente se deixam apanhar na sua intimidade.
É branco, é vermelho, é verde, é preto, é castanho, é amarelo, é laranja. É doce, é salgado, é agri-doce. É malandrinho, é seco, é frito, é cozido, é de forno, é solto. É em empadão, é em canja, é em bolinhos. É bom, acompanha com tudo, até com o mais improvável e cai sempre bem. É arroz carolino do Baixo Mondego Indicação Geográfica Protegida (IGP). É um bago pequenino, arredondado, com imensa goma muito adequado para a versão “à malandrinho”.
Dizem os especialistas que o menor número de horas luz, as temperaturas médias mais amenas, as amplitudes térmicas mais suaves, e a alta humidade relativa do ar e a menor radiação global fazem do arroz carolino do Baixo Modego IGP um produto de características únicas, ditas singulares. Traduzindo o que esta linguagem tem de desconhecido, podemos dizer que a geografia faz os homens, mas também faz os produtos. Podemos dizer que o arroz carolino do Baixo Mondego, tão bom e adequado para fazer o arroz doce muito cremoso onde cada bago se deixa envolver por uma goma leitosa que nos arrepia a alma, é devedor de uma geografia que faz daqueles pequenos bagos autênticas pérolas das nossas marinhas.
Se a geografia faz o arroz, as mulheres matriarcas fizeram o resto. Souberam criar um receituário diverso, de sobrevivência, de fuga à fome, de engano de uma despensa de parcos recursos, mas também de festa, de abundância, de sublime. É na cozinha que os pequenos bagos se transformam e se tornam parte da identidade da cultura gastronómica baixo mondeguina. É na mesa que eles são admirados, saboreados e muito cobiçados.
Tão reconhecido à mesa é, no entanto, de surpreender tanto desconhecimento. Tanto desconhecimento sobre o processo de produção atual e como ele poderia potenciar uma versão mais biológica. É de arrepiar as imensas cargas de fertilizantes e herbicidas transportadas pelos tratores nas sementeiras. Sabe Deus como estarão os lençóis de água que nos saciam a sede no quotidiano e com a qual fazemos a nossa vida diária.
É pena o desconhecimento sobre os antigos processos de produção, não só quanto aos protagonistas, como os ranchos que iam para o campo organizavam todo o ciclo agrícola, mas também quanto às alfaias que já desapareceram da paisagem com a mecanização introduzida.
É pena as histórias que morrem com as pessoas e não são resgatadas a tempo do esquecimento. As histórias das cheias que, de repente, alagavam os campos e apanhavam desprevenidos quem por lá andava a trabalhar. As histórias dos amores que se trocavam na paisagem plana onde a sombra das árvores dava guarida aos amantes mais ousados. As histórias das doenças provocadas pela humidade acentuada e pelas águas estagnadas do Mondego que assim ficavam de Outubro a Abril. As histórias dos caminhos por entre os arrozais por onde se cantava a paisagem, as pessoas, o Mondego, a cor do céu no crepúsculo com as “ruivas” a raiarem de cores vivas o horizonte a fazer adivinhar dias quentes, o cheiro do luar de Verão animado pelo cantarolar das cigarras e pela luz trémula dos “luzicus”, as papoilas de vermelho vivo que ladeavam os carreiros.
É pena que tenhamos aderido entusiasticamente aos risotos e ao sushi sem perceber a diversidade de técnicas de cozinha tradicionais associadas ao arroz e as cultivar entre os mais novos. É uma pena que não haja um inventário do receituário tradicional da área geográfica do arroz carolino do Baixo Mondego, que abrange os concelhos de Cantanhede, Soure, Montemor-o-Velho, Figueira da Foz, Condeixa-a-Nova, Coimbra, Pombal.
É uma pena que ainda não tenhamos percebido que o arroz e a sua produção são indissociáveis da paisagem natural da geografia física como o rio Mondego, as marinhas que, no Inverno, são espelhos de água e, no Verão, se transformam em searas que cobrem a paisagem de uma paleta de cores que vai desde o verde até ao amarelo palha. É uma pena não termos ainda percebido que os turistas gostariam de admirar esta paisagem que de tanto a vermos parece repetir-se anualmente sem nos deslumbrar.
É uma pena que não haja um maior investimento da marca Arroz Carolino do Baixo Mondego e que se faça dele produto bandeira que agrega um conjunto de municípios. Menos investimento parcial centrado na pequena parcela do território, mais busca de uma identidade maior que dá maior sentido de pertença e onde todos se revêm. Afinal é o NOSSO ARROZ CAROLINO que antes de ser IGP já era nosso, já nos matava a fome e já nos dava o sabor doce da festa. É o arroz com sabor a abraço de mãe. E não há nada melhor que isso, o arroz, sobretudo, se doce, e o abraço de mãe.