Numa semana particularmente sensível (e desafiante) para a União Europeia e para a NATO, decorrente da abertura das negociações sobre o fim da guerra na Ucrânia e nas quais a Administração Trump pretende atribuir um papel secundário à Europa, a Comissão Europeia lançou, como previsto, o seu Roteiro para um setor agrícola e agroalimentar próspero na União Europeia.
A comunicação sobre a Visão para a Agricultura e a Alimentação é particularmente ambiciosa, tendo em vista o grande objetivo de dispormos de um sistema agroalimentar atrativo, competitivo, resiliente, preparado para o futuro, face aos desafios geopolíticos que se desenham, bem como o combate às alterações climáticas, criando condições de vida e de trabalho justo nas zonas rurais.
Relembrando que os contributos do Diálogo Estratégico e das discussões do EBAF foram essenciais para a construção desta Visão – sem esquecer que o Diálogo resultou, em grande parte, das manifestações dos agricultores em toda a Europa em janeiro e fevereiro de 2024 – trata-se de uma estratégia que naturalmente se saúda, nas suas linhas gerais e prioridades, muito mais realista do que no passado.
Talvez a sociedade não tenha a noção do que representamos no conjunto do setor agroalimentar e o que está em causa: 900 biliões de euros de valor acrescentado, 30 milhões de empregos, mas apenas 12% de agricultores com idade inferior a 40 anos, o que mostra o muito que temos de fazer para a renovação geracional, até porque a inovação e digitalização são absolutamente estratégicas para a competitividade e sustentabilidade.
A simplificação, a gestão eficiente dos recursos naturais, desde logo a água, a economia circular e redução do desperdício alimentar, a dependência europeia em matéria de proteína, o bem-estar animal e a abordagem aos pesticidas – muito mais realista, com base na ciência e no conhecimento – bem como uma política que tenderá a privilegiar mais os incentivos e menos a condicionalidade, são muito bem-vindas.
Notas importantes, ainda, para os ecoregimes, a valorização dos serviços ambientais, o mercado do carbono e o papel da produção e da alimentação animal, num contexto em que a Comissão reforça a sua enfase na pecuária para promover o futuro do setor no longo prazo. O desenvolvimento de um sistema de benchmarking, desde há muito pedido no quadro da EU CAP Networking, deverá ser uma realidade, com a denominada “bússola da sustentabilidade nas explorações agrícolas” para ajudar os agricultores a melhorar o seu desempenho. A Diretiva sobre as Práticas Comerciais Desleais vai ser revista, para que não seja possível as vendas abaixo do custo de produção, o que é muito relevante.
Por último, quatro orientações absolutamente essenciais: na relação entre os produtos europeus e os congéneres importados, as normas da União Europeia não podem conduzir a desvantagens competitivas e devem estar em conformidade com as regras internacionais; a higiene e segurança dos alimentos (feed safety) deve ser inegociável, aspeto central nos acordos comerciais; o setor é considerado como estratégico em termos de segurança e soberania alimentar; o lançamento de um Diálogo anual sobre alimentação, com todos os intervenientes, incluindo os consumidores, para encontrar soluções para temas tão importantes como a acessibilidade dos preços dos alimentos (claramente em causa na conjuntura atual) ou a inovação, à luz das preocupações societais.
Das primeiras reações à Visão, genericamente bem recebida pelos setores agrícola e agroalimentar – trata-se de uma Estratégia, veremos como corre a discussão e as propostas legislativas – algumas ONG já lamentaram que seja uma visão “míope”, ou que não siga uma abordagem que promova a redução do consumo de carne, como medidas de combate às alterações climáticas. Vamos ter de lidar com estas divergências, caminhos e olhares opostos para o futuro da agricultura e da alimentação, ao longo do debate e das discussões que agora se iniciam. Os Grupos de Diálogo Civil, para além do Conselho da Agricultura e Alimentação onde a FEFAC está representada, serão fóruns de referência para reiterar aquilo em que acreditamos.
Para já, congratulamo-nos com o conteúdo e objetivos, tanto mais que incorporam os nossos principais pontos de vista e prioridades. Veremos agora a sua operacionalização.
Por outro lado, sem querermos ser injustos, talvez a Visão continue a ser demasiado agrícola, e menos agroalimentar, ao não apontar propostas concretas para as cadeias de abastecimento ou para a indústria alimentar. Naturalmente, precisamos de matérias-primas de proximidade e de qualidade, agricultura em todo o território, de reduzir a nossa dependência, mas temos de ter uma cadeia competitiva, dinâmica e resiliente, neste contexto de grande instabilidade e volatilidade, que responda aos interesses e expetativas dos diferentes consumidores.
A indústria agroalimentar é, como sabemos, a grande exportadora da União Europeia e em Portugal, as exportações da indústria da alimentação e bebidas atingiram o record em 2024, com 8 190 milhões de euros, um crescimento de 8,7%.
Necessitamos, pois, de uma Visão, que incorpore esta dimensão, de cooperação ativa entre todos os intervenientes na cadeia alimentar, fazendo a ligação, de forma coerente, entre as políticas agrícolas e alimentares.
Igualmente determinante é a dotação financeira para tornar realidade todos estes objetivos. Existem fundados receios de que os instrumentos previstos no próximo Quadro Financeiro Plurianual, com a ideia de um fundo único e não específico para a PAC, venham a limitar fortemente as ambições do Comissário Hansen, sobretudo se pensarmos nas pressões para aumentar os gastos com a segurança e defesa.
Nesta perspetiva, precisamos de um orçamento robusto para legitimar a Visão para a Agricultura e Alimentação. Este não pode ser, como é referido em Bruxelas, “o elefante na sala”.
Jaime Piçarra
Secretário-Geral da IACA
Que visão para a agricultura e alimentação? – Jaime Piçarra – Notas da semana